Um Útero Sem Saída: A Tragédia do Colapso dos Ritos de Passagem — e Que Fazer em Sua Ausência

Carlos Alberto Sanches
19 min readFeb 4, 2021

Temos insistido bastante na questão da perda dos ritos de passagem nas sociedades ocidentais modernas, e em sua relação com fenômenos típicos da contemporaneidade: da crise de masculinidade à falência das instituições tradicionais. Somos avessos a qualquer “monocausalismo”, e, assim sendo, não julgamos lícito colocar esta perda como o único fator causal destes fenômenos. Contudo, tornou-se claro para nós que ela figura entre os fatores mais determinantes, não de uma classe reduzida de problemas, mas da própria crise geral destas sociedades. O presente artigo tece considerações sobre o problema — apontando a natureza destes ritos — e apresenta algumas notas sobre como proceder na condição atual marcada por esta falta.

Os ritos de passagem não são mero “cerimonial” — significando por este termo uma mera “encenação” coletiva de valor tão somente “simbólico” e quase “lúdico”. Tal visão advém da miopia moderna. O olhar do homem moderno não consegue apreender as forças mais sutis (tão ou até mais efetivas do que as forças materiais e psíquicas, únicas que consegue apreender, e ainda assim a muito custo) manipuladas e postas em operação nestes ritos, e que são as verdadeiramente efetivas e realmente transformativas. Como tal, ele não enxerga nestes ritos nada além de um “teatro” que dramatiza a passagem humana através dos processos naturais e, quando muito, sociais. Em seu livro Rei, Guerreiro, Mago e Amante (do qual já extraímos uma passagem que nos serviu de texto de um de nossos vídeos, intitulado Colapso dos Ritos de Passagem: Crise de Masculinidade), os psicólogos Robert Moore e David Gillette apontam a Reforma Protestante como promovedora de um ceticismo quanto aos ritos tradicionais, o que teria resultado no descrédito generalizado de sua eficácia: o rito passa a ser entendido como um mero cerimonial de importância “apenas simbólica”, algo portanto não fundamental e necessário, mas dispensável e supérfluo, o que resulta, por sua vez, em seu abandono. Não podemos endossar integralmente a hipótese de Moore e Gillette, apesar de concordarmos em que o contexto histórico da Reforma (do Renascimento e do Humanismo) foi um momento chave. Para nós, as causas são mais profundas e anteriores. Mas, seja qual for a origem deste ceticismo, ele impregnou inclusive a posterior Antropologia, que apesar de seus refinados métodos não consegue ultrapassar os limites da estreita visão profana de mundo. O rito, em tal visão, é uma mera convenção social. Ser humano significa vestir esta segunda pele que é a Cultura (e com isto concordamos), sobrepô-la ao corpo nu e mudo (proto-humano) da animalidade. Os ritos cumprem esta função: eles revestem a existência (ainda animal e proto-humana) de significado, humanizando-a. O problema é que, nesta perspectiva, tudo parece parar por aí. É como se os ritos não tivessem poder eficaz em si mesmos, mas extraíssem sua eficácia da crença coletiva neles; como se, para funcionar, dependessem apenas de “os homens acreditarem neles”; como se, na separação do menino do seio materno e em sua submissão às provas rituais, estivéssemos assistindo apenas à encenação da passagem de um estágio biológico (a infância) a outro (a fase adulta); como se o simbólico-ritualístico percorresse obedientemente os trilhos fixados pela evolução física ontogenética, ratificando-a passivamente; como se todos os esforços da comunidade humana buscassem simplesmente “enfeitar” a existência, “adornar” o transcurso natural de evolução física dos indivíduos; enfim, como se o processo da maturidade transcorresse independentemente deles.

Não. Os ritos não são isto. A transformação que provocam - seu efeito - não é meramente “convencional”. Tratam-se de verdadeiras tecnologias coletivas de transmutação ontológica dos indivíduos. Eles agem com uma precisão, por assim dizer, “cirúrgica” sobre as estruturas psicossomáticas dos indivíduos. Eles não “fingem” ou “encenam” produzir um homem ou uma mulher: produzem de fato um homem ou uma mulher. Produzem realmente um novo ser. Operam, como veremos, um segundo parto para um segundo nascimento.

Para deixar nossas considerações mais claras, devemos apresentar rapidamente o esquema das cinco individuações (ou cinco esferas de individuação, ou, ainda, cinco esferas do processo de individuação) adotado por nós a partir de uma reelaboração muito particular do esquema teórico do filósofo Gilbert Simondon (1924–1989).

Todo e cada ente subsiste em estado de meta-estabilidade. Todo e cada ente é um sistema cujos elementos mais ínfimos (ou unidades de força, como prefiro dizer) encontram-se em incessante movimentação, e que está buscando sempre o equilíbrio suficiente desses elementos ou unidades de força para não se desintegrar. Toda coisa, enquanto sistema, é uma luta incessante contra o desequilíbrio e uma busca incessante pela estabilidade. Essa busca do sistema pela estabilidade, contudo, é obrigatoriamente fadada ao fracasso: o desequilíbrio definitivo é o destino fatal de todo sistema, e resulta em sua desintegração (ou seja, o ente perece, deve perecer). Enquanto tal coisa subsiste no espaço-tempo, portanto, não pode ser dito que ela se encontra “estável” — pois ela é sempre um devir — mas, na terminologia simondoniana, seu estado é o meta-estável. Nesta luta contra o desequilíbrio e nessa busca pela estabilidade, o ente complexo e aberto — o ser humano — atravessa várias esferas de individuação. Vamos elencá-las.

A primeira esfera é a que se pode chamar de individuação física. Esta individuação cinde o ser no espaço físico, determinando nele seus limites; diz respeito ao reino elementar ou mineral. É o que faz uma pedra, por exemplo, separada da montanha, ser aquela pedra em particular e nenhuma outra. A segunda é a individuação vital, orgânica ou biológica. Como o nome indica, diz respeito aos seres vivos, isto é, sistemas que precisam se movimentar, se deslocar ou se prolongar (por exemplo, através de raízes) a fim de sondar e capturar no meio circundante os nutrientes necessários à sua manutenção; corresponde aos reinos vegetal e animal. Além destas, temos a individuação psíquica, própria do ser que coloca (a si próprio ) a problemática de sua manutenção (para a qual utiliza instrumentos como a razão) e, indo além desta, a problemática de sua identidade. Este ser é o humano. Confirmando o ensinamento das doutrinas tradicionais, ele carrega em si todas as esferas anteriores. Também temos condição de defender a existência de uma individuação coletiva ou étnica. Os seres humanos existem coletivamente, e estes coletivos (comunidades) apresentam caracteres mais ou menos únicos, distintos dos demais agrupamentos também humanos. É como se as aldeias e cidades constituíssem um sistema ou, ainda, um enorme organismo vivo que difere dos demais, seus vizinhos, pelos símbolos que o revestem, pelo deus que cultua, pelo modo de enterrar seus mortos etc. (ou seja, pela Técnica, que é acima de tudo um diferenciador étnico, embora não possamos desenvolver isto aqui). Falamos de quatro individuações, falemos da quinta à frente. As esferas de individuação psíquica e coletiva estão atreladas. Há muito o que se dizer sobre isto, mas aqui nosso espaço é reduzido. Falemos de apenas um dos aspectos dessa articulação.

Entendido inclusive biologicamente, o ser humano é uma das espécies que vem ao mundo menos “pronta”. O período intermediário entre seu parto e o atingir de sua autonomia relativa é extremamente prolongado (leva anos) comparado ao de outros seres (em que às vezes não ultrapassa algumas semanas). Já se enfatizou em certas discussões que mesmo quando adulto ou velho o homem preserva traços físicos da infância (neotenia), que noutras espécies são completamente erradicados na maturação (tamanho do crânio proporcionalmente ao resto do corpo, por exemplo). É como se o nascimento do homem sempre fosse prematuro. Isto já seria bem ilustrativo da função que exerce a coletividade no desenvolvimento do ente que — para dizê-lo existencialisticamente — , lançado ao mundo, ela deve acolher e cuidar. Sim, vamos dizê-lo sem mais delongas: o espaço coletivo humano continua, em um meio extra-uterino, a gestação interrompida dos seus indivíduos. O espaço coletivo é como um útero artificial dentro do qual os seres lançados são conduzidos à completude, à plenitude de seu ser, ao seu verdadeiro nascimento. Para utilizar uma metáfora de Aristóteles retomada brilhantemente por Peter Sloterdijk (recomendamos a leitura de seu No Mesmo Barco, em especial o capítulo sobre Paleopolítica), a missão das sociedades tradicionais (mais clara ainda em sua forma tribal e em espaços reduzidos e concentrados, “aldeias”) é servir como um “forno de embriões”. Ela recebe essa massa pré-humana (ou proto-humana, humana apenas em potência), essa substância ainda amorfa, essa “argila”, e dá a ela uma forma realmente humana, uma forma específica, uma personalidade. Ela deve moldar, em uma “carinha”, um rosto. Mas este rosto deve ser — e isto é extremamente importante — impressão, na “argila”, de um dos “moldes faciais” que jazem no contêiner da memória coletiva. A coletividade deve moldar o ser por ela acolhido à imagem de um de seus heróis ou de outras de suas figuras exemplares que (independentemente de sua realidade histórica) são seus arquétipos ou protótipos. Noutras palavras: a função da coletividade é regenerar seus homens exemplares do passado nas crianças do presente. Trazer seus patriarcas sempre novamente à luz. Esta é a principal articulação entre a esfera de individuação psíquica (o “eu”) e a esfera de individuação coletiva (o “nós”). A individuação psíquica é levada a cabo pela educação e pelos ritos da comunidade.

Ao ler um tal retrato da missão regenerativa da coletividade humana, certamente alguns leitores dirão que tal passado é indesejável; dá-se “graças” pelo fato de ela ter sido abandonada pelos seres humanos, pois, em sua perspectiva moderna, considera-se que ela “suprime” a liberdade do “eu” em formação ao deitar sobre ele uma fôrma padronizada e antiquada. Ocorre que o ser humano não tem escolha. Os arquétipos que orientaram a formação humana durante milênios são os que melhor se ajustam às necessidades psicossomáticas, existenciais e espirituais dos seres humanos, sem mencionar que entre eles havia, sim, uma certa diversidade. A plenitude da personalidade não era sufocada, mas sim realizada por este sistema. Cada criança recebia a forma adequada à natureza íntima que os “mestres da individuação” da coletividade identificavam. Estas correspondem, genericamente, aos quatro tipos de alma (ou varnas, como se diz na tradição hindu ou védica): um tipo sacerdotal-contemplativo, um tipo guerreiro-ativo, um tipo “comerciante” (ou, mais especificamente, dado a transação de objetos e negociação de valores) e um tipo braçal-anímico. Dignidade, tradicionalmente, é isto: dar a cada um o lugar social correspondente às suas pré-disposições íntimas e à sua natureza psíquico-espiritual. (Fora disto, apenas caos e infelicidade.)

Falamos de uma quinta individuação. Esta não pode ter sido concebida pelos sistemas de pensamento modernos. Trata-se da individuação espiritual. A individuação psíquico-coletiva dá ao indivíduo sua personalidade e seu lugar na sociedade. São agregativos. É por este motivo que, apesar de estes ritos serem chamados de “iniciação” (pois são, ao pé da letra, uma “introdução” do menino no círculo dos homens), não correspondem ao que as tradições esotéricas entendem por este termo. Podemos dizer que existem dois tipos de “Iniciação”. Uma iniciação agregativa: correspondente aos processos que aqui estamos descrevendo; ela integra o indivíduo no grupo. E uma dissociativa: que separa o indivíduo do grupo, mesmo lhe dando, paradoxalmente, certa função social; é deste tipo a dos xamãs, por exemplo, cuja iniciação é marcada por árduos processos de um isolamento mais radical que os demais, e que resulta em seres que estão mais do lado de “fora do espaço humano coletivo, na “natureza” (sobrenaturalmente concebida, claro) e no “além-mundo”, do que “dentro” dele. As iniciações esotéricas todas têm este caráter: elas resgatam o indivíduo do seio da coletividade humana — geográfica, histórica e etnicamente circunscrita — e o elevam a uma outra, supra-geográfica, supra-histórica e supra-étnica. O que a individuação psíquico-coletiva (iniciação agregativa) e a individuação espiritual (iniciação dissociativa) têm em comum é que ambas são rompimentos com o primeiro nascimento; rompimentos com a ordem meramente material, biológica e afetiva que constituem sua animalidade (e sua emotividade). Ambas podem ser chamadas, portanto, de um segundo nascimento (lembrando que “nascido duas vezes”, dvija, é como se chama na tradição védica ao que obteve êxito nessas empresas). Isto faz com que toda individuação psíquica operada em termos tradicionais seja também uma individuação espiritual. Para ficar ainda mais claro: toda individuação psíquica (tradicional) pode ser também uma individuação espiritual, mas toda individuação espiritual é mais do que uma individuação psíquica.

Momento crucial dessa empresa são os ritos de passagem. Falemos deles.

A ideia da comunidade como um forno de embriões, como um útero artificial, e das crianças como seres ainda apenas potencialmente humanos (a humanizar) tem confirmação na ideia tradicional de que toda criança, independentemente do sexo, era mantida nos domínios do Feminino, ou seja, no círculo de pertencimento das Mulheres. Já mencionamos em nossos vídeos que os círculos do Masculino e do Feminino, dos Homens e das Mulheres, são rigidamente separados nas sociedades tradicionais, ao ponto de em alguns casos (hoje já raros), para se ter ideia, homens e mulheres de uma mesma comunidade possuírem línguas próprias exclusivas de seu sexo, empregarem léxicos completamente diferentes (recomenda-se o vídeo intitulado Ubang: onde homens e mulheres falam línguas diferentes). Nestas sociedades, para aproveitarmos o exemplo, o menino, antes de passar pelo rito de passagem e tornar-se homem, fala a língua das mulheres. O Círculo das Mulheres, que é portanto também o círculo das crianças, é o círculo da pré-masculinidade, da pré-personalidade, e por isto é também o círculo da Animalidade (ou seja, do que está aquém da plenitude da quarta e da quinta individuações). Ou seja, podemos afirmar que a condição do menino (depois falaremos das meninas) antes do rito de passagem é a condição de um “feto” no interior de um útero (artificial, mas igualmente materno). O rito de passagem seria realmente um segundo parto. Este segundo parto retira os meninos do círculo das Mulheres e os insere no círculo de pertencimento dos Homens. Eles agora são outros seres. Seres caracterizados pelos traços que ainda listaremos à frente, mas dos quais podemos antecipar a capacidade de encarnar o Princípio Transcendente da Soberania. Constituem o Círculo dos Homens ou, como chama Julius Evola, uma Sociedade dos Homens. Este núcleo masculino é o centro mesmo das comunidades humanas, isto é, sua esfera decisória, sua esfera política — especialmente nas sociedades de tipo patriarcal, claro, embora também as de tipo matriarcal não dispensem a existência de um círculo iniciático masculino, posto neste caso, contudo, a serviço da Grande Mãe ou da Amante Divina.

Vejamos como Julius Evola descreve tal realidade.

Em muitos povos primitivos o indivíduo, até certa idade, era mantido no seio da família e principalmente sob os cuidados de sua mãe — em tudo o que se referia ao aspecto material, físico da existência que estava sob o signo feminino — porque era considerado apenas um ser ‘natural’. Mas em um determinado momento, uma mudança de natureza e status ocorre, ou mais precisamente, pode ocorrer. Ritos especiais chamados justamente de ‘ritos de passagem’, muitas vezes precedidos de um período de separação e isolamento e frequentemente acompanhados de duras provas, despertam, segundo um esquema de ‘morte e renascimento’, um novo ser que, só a partir daquele momento, será considerado um ‘homem’. Antes disto, qualquer membro do grupo, de qualquer idade, era de fato assimilado às mulheres, crianças e até animais. Depois de ter passado por essa transformação, o indivíduo é vinculado à ‘sociedade dos homens’, onde o termo homem tinha, portanto, um sentido iniciático (sagrado) e guerreiro ao mesmo tempo, devido ao poder que detinha no grupo ou clã. Da mesma forma, as tarefas e responsabilidades que lhe incumbiam especialmente dentro do grupo e seus direitos eram diferentes dos outros membros. (Os Homens e as Ruínas, 1953)

A expressão “segundo parto” não é gratuita. O trauma que tem lugar neste parto (psíquico-espiritual) não fica nada atrás do trauma que tem lugar no primeiro (biológico). Literalmente: arranca-se o menino da mãe. E isto equivale a dizer: arranca-se o menino do Círculo das Mulheres, arranca-se o menino do seio da Animalidade. Daí o fato de todos os ritos de passagem terem em comum um traço observado pelos antropólogos como a ritualização de um repúdio à mulher. A título de exemplo, citemos Ruth Benedict:

Na Austrália, maturidade significa participação num culto exclusivamente masculino cuja feição fundamental é a exclusão das mulheres. Qualquer mulher que sequer ouça o homem que na cerimônia solta o urro do touro, é condenada a morrer; ela nunca deve ter conhecimento dos ritos. As cerimônias de puberdade são repudiações simbólicas e complicadas das ligações com a fêmea; os homens são simbolicamente promovidos a seres que se bastam a si próprios e a elementos completamente responsáveis da comunidade. Para alcançarem este fim, empregam-se drásticos ritos sexuais e conferem-se ao iniciado garantias sobrenaturais. (Padrões de Cultura, 1934)

A passagem citada nos é útil para endossar este ponto, já entrando nos atributos apresentados pelos indivíduos que constituem essa Masculinidade: os homens verdadeiros — ou seja, não simplesmente as crianças com corpo de adulto — , os iniciados na Masculinidade, são seres que se bastam a si próprios. Já tivemos oportunidade de explicar, em textos sobre Metafísica dos Sexos, que o Princípio Masculino, ao contrário do Princípio Feminino, basta a si mesmo; enquanto o Feminino depende de complementaridade, sendo a Mulher essencialmente relacional, o Masculino, por assim dizer, já contém dentro em si seu complemento (daí a recorrência, nos mitos, de a criação da Mulher ser feita a partir do Homem, como que extraindo-a de dentro dele). “Que necessidade tenho eu, para me realizar, de uma mulher, se já existe uma mulher em mim?”, era algo dito por certa classe de ascetas antigos. Em outras palavras: enquanto a Mulher precisa do Homem (para ser Mulher), o Homem verdadeiro não precisa da Mulher (para ser Homem). Mesmo que opte por unir-se a uma, fá-lo não por necessidade, nem por meros impulsos da animalidade residual, mas por uma decisão soberana tomada acima do reino da necessidade. Ser homem — e tivemos também muitas chances de explicá-lo em nossos vídeos (ver, por exemplo, Virilidade Fálica e Virilidade Espiritual) — não significa apresentar traços físicos do adulto do sexo masculino. Não significa unir-se sexualmente às fêmeas. Não significa nem mesmo “constituir família” (explicamos isto em um vídeo recente, O Estado Surge a Partir da Família? Que “Família”?). A “Família” tradicional é uma associação não biológica, não econômica e nem afetiva (como é a nuclear moderna e burguesa), e sim religiosa. O “Pai” era algo como o sacerdote do culto doméstico. Em todas as sociedades tradicionais, o pai é pai não porque “sustenta” sua esposa e filhos, mantendo-os economicamente, ou ligando-se a eles “por amor”, mas porque encarna o princípio de uma paternidade transcendente — lidera a liturgia ao redor do fogo doméstico. Sem homens capazes de um tal liderar espiritual (ou seja, sem os homens produzidos pelos ritos de passagem), não pode haver família tradicional. Ser homem é encarnar o mencionado princípio da Auto-suficiência e da Soberania, capacidade obtida mediante não a intensificação, mas o rompimento com os laços meramente biológicos, instintivos e afetivos.

Sim: olhando ao nosso redor, como estamos distantes dessa Masculinidade plena, soberana, espiritual. Como dizer que a perda dos ritos de passagem, que despertavam o homem no menino, que ativavam no psíquico esta autossuficiência masculina, não tem a ver com a tragédia que assistimos ao nosso redor: em que meninos são educados para depender cada vez mais extremamente da Mulher, em todas as suas facetas: como Mãe ou como Amante; em que o Sexo — principal força da Mulher (haja visto que, no pensamento weiningeriano e também tradicionalista, a Mulher é quase como “o Sexo em pessoa”) — permeia toda o espaço coletivo; em que homens incompletos (meninos crescidos) se orgulham de entregar-se aos instintos (ou seja, de dependerem da Mulher) como se uma tal rendição fosse índice de masculinidade — chegando, alguns deles, a se submeterem às mais lastimosas humilhações diante da Mulher para negociarem acesso ao objeto sexual portado por ela... Que estes atributos musculares e eróticos (reino da Mulher, reino da Animalidade) possam ser hoje consagrados como símbolo de Masculinidade, representa uma anomalia de dimensões ímpares na história da residência humana sobre a terra. É aceito que estamos na Era de Kali (a Era Obscura), quarta e última das etapas macro-cósmicas, e a tendência à Ginecocracia é uma marca crescente desses tempos. Porém, pouca atenção se dá ao aspecto que aqui estamos tentando iluminar. A ausência dos ritos de passagem significa a ausência dos meios de tornar-se homem, como também dos meios de trazer de volta a presença soberana dos patriarcas. Estamos presos no Círculo das Mulheres (por extensão, da Infância e da Animalidade). Estamos presos neste útero artificial em que fomos lançados — em que os homens sempre, desde sempre, foram lançados, mas agora sem os meios de rompê-lo, de operar nosso segundo parto. Estamos em um útero sem saída. A Ginecocracia se vale do colapso dos ritos de passagem masculinos: não interessa às mulheres modernas (esclerosadas por ânsias de poder antinaturais) que existam homens plenos, isto é, autossuficientes. Nota-se que nas sociedades tradicionais a menina não precisa, para se tornar Mulher, de ritos muito complicados. Ruth Benedict, na obra citada, soube notá-lo: os homens é que precisam desse segundo trauma, já nas mulheres a transição da infância à condição adulta ocorre quase naturalmente, reconhece-se quase apenas pelos sinais do corpo, como o aparecimento da menstruação — os ritos de passagem femininos acompanham perfeitamente, obedientemente, o transcurso fisiológico, apenas o ratificam, ou seja, não produzem efetivamente a mulher, mas apenas dão à mostra, comunicam à comunidade que esta menina em particular já é uma mulher. Quem sofre com a ausência dos ritos são os homens, mais do que as mulheres. Ginecocracia: matando os ritos, as mulheres matam seus filhos antes que se tornem homens; ou melhor, matam o homem nos seus filhos antes que venham à luz; aniquilam sua masculinidade antes que desta semente brote a ameaçadora imagem do pai. O homem ideal se torna então isto: uma eterna criança, dependente do seio da mulher, que de preferência possa fazer as vezes de um provedor ou pelo menos de um objeto para sua satisfação sexual. Sintomático: o Matrimônio usurpa o lugar dos ritos de passagem: agora, é unir-se à mulher — não mais separar-se dela — que faz do menino um homem.

Já está claro que, para nós, a afirmação de que “não se nasce de tal sexo, torna-se de tal sexo” é correta e verdadeira. Ela contém apenas o erro, quando enunciada por modernos, de ignorar que o sexo do corpo com o qual se vem ao mundo informa o caminho de individuação a ser percorrido pelos indivíduos. Portanto, é de se lamentar que, para fazer frente a este “relativismo” sociologista, muitos pretensos adeptos da cosmovisão tradicional caiam no extremo oposto: um tosco “determinismo” biologicista, negando a existência e importância do que chamamos aqui de segundo nascimento. Ambas posturas são sintomáticas da cegueira metafísica moderna.

Resta-nos tentar responder a questão: na ausência dos ritos de passagem, que fazer?

Iremos esboçar rapidamente uma resposta.

De tudo o que dissemos, concluímos que, ao contrário do homem tradicional, que vivia envolvido por uma redoma simbólica integral e era conduzido desde cedo através de suas individuações pelos mestres da comunidade, que aplicavam uma verdadeira tecnologia de precisão cirúrgica sobre a estrutura psicossomática dos indivíduos (tecnologia que passou pelo crivo do tempo, testemunhando sua eficácia, diga-se de passagem), nós, contemporâneos, não podemos mais contar com a sociedade para realizarmos a plenitude de nosso ser (ou, no caso, de nossa masculinidade). A sociedade se converteu, de principal agente, em principal inimigo da individuação masculina. Em tais condições, resta-nos explorar as possibilidades de obter tal êxito no âmbito da nossa vida privada. Para tal, devemos identificar os princípios operativos dos ritos de passagem masculinos. É isto que figura entre os objetivos de nosso projeto (canal no Youtube e plataformas textuais), embora devamos relembrar que nosso campo de investigação e nosso interesse excedem em muito — em profundidade e em extensão — essa questão particular. Identificados estes princípios, devemos agir sobre eles ou com eles, fase esta que se dá em um terreno de auto-experimentação do qual, necessário dizer, dificilmente poderíamos extrair fórmulas detalhadas válidas universalmente, embora possamos dele obter algumas experiências e indicações gerais.

Quais são os princípios operativos de que estamos falando?

Os ritos de passagem devem ao Mito muito de sua estrutura fundamental. É válido, portanto, aproximarmo-nos das imagens que personificam simbolicamente o êxito da individuação masculina nas mitologias — as “mil faces do herói”, como chamaria Joseph Campbell. Contudo, não nos iludamos. O mero contato com este conteúdo não basta. Já se afirmou certa vez, contra nossas teses, que o rito de passagem seria obsoleto, pois a transformação do menino em homem continua ocorrendo sem eles, “em nosso inconsciente”. Tal afirmação é errônea. Claro que certos elementos estruturais do Mito — tal como os arquétipos, se quiserem— estão “presentes” na dimensão que a psicanálise junguiana entende como o “inconsciente” (território que tem outra configuração na perspectiva tradicional/tradicionalista, mas não cabe falar disto aqui). Claro que eles estão lá: mas, por assim dizer, não conseguem de lá “se libertar”. A estrutura mítica continua presente no homem porque ela é estruturante da própria humanidade! Chegado a certos marcos na trajetória do indivíduo, despertam nele, saídas das profundezas de sua consciência, certas pré-disposições, certas “reminiscências”, se quiserem. Mas as tecnologias coletivas de transmutação eram justamente a contraparte externa deste processo interno, e, sem ela, este processo interno é praticamente ineficaz. Se os ritos fossem dispensáveis, os homens os teriam abandonado — voluntariamente — há muito tempo.

Arnold van Gennep (1873–1957) consagrou a divisão tripartite das etapas dos ritos de passagem: Exclusão, Promoção e Inclusão. Na primeira, os meninos são arrancados do seio doméstico e isolados nalgum lugar que represente um espaço de exceção da ordem normal das coisas: na mata ou numa cabana especial, por exemplo. Ali, quando não imersos em absoluta escuridão, são algumas vezes encobertos por algum véu ou (como mostramos em um de nossos vídeos) tiras de fibra extraída de árvores. Assim, ocultos por detrás deste véu, encontram-se em um limbo ontológico: já não são mais meninos, mas ainda não são homens. Em seguida, passam por certas provas. Estas provas ao mesmo tempo simbolizam, representam e produzem um paroxismo da crise de transição. Ele deve resolver esta crise conforme as instruções que recebe dos mestres do rito, dos homens que obviamente já estão inseridos na Sociedade Masculina. Então são promovidos a membros dessa sociedade. São nela incluídos. E retornam triunfantes à sociedade como um novo ser. Já não deverão — muitas vezes isto é enfatizado em relatos etnográficos — falar com suas mães e irmãs de igual para igual.

Isolamento, provocação da crise, resolução da crise, investidura de saberes e poderes (praticamente) sobrenaturais, adesão à comunidade de seres seus iguais, retorno triunfal à aldeia: muitos temas míticos dramatizam este esquema, como o combate do Cavaleiro com o Dragão (de que já tratamos também em um de nossos vídeos).

Aquele que consiga atualizar este esquema operacional às condições contemporâneas — às suas condições — terá conseguido a chave para a individuação masculina plena. Será um dos homens, uma presença viva dos patriarcas, um membro da esfera verdadeiramente política, e um eixo em torno do qual tudo gira.

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Carlos Alberto Sanches

Sociólogo, Escritor, Videomaker; Pesquisador em Antropologia, Metafísica Tradicional e Tradição Perene